sábado, setembro 6

"A LENDA DA MULHER BARBUDA"

Nota:

Este “post” servirá, tal como o de “A CORJA CORRUPTA”, para MEMÓRIA FUTURA,
com o devido respeito que o Circo me merece e que é algo que faz parte do meu imaginário de infância e juventude, recordando-o sempre com um enorme prazer e respeito!
É um pouco extenso, mas convido-vos a lê-lo até ao fim.


Dedicatória

É em primeiro lugar, dedicado ao Lucífer e depois a Todos os Companheiros Benfiquistas Excepcionais, Fundador do Blogue, Com-Bloggers e Todos os Comentadores que dão um extraordinário contributo a um espaço que é sem dúvida alguma um Baluarte Único de Defesa do SLBenfica – O ANTITRIPA!
Obrigado…e divirtam-se!!!


GRÃO VASCO
A LENDA DA MULHER BARBUDA


A pequena e pacata cidade de província agitava-se num alvoroço inusitado. A miudagem, entusiasmada e barulhenta, gritava:
- Já lá vem! Já lá vem!
Naquele tempo, de difíceis acessibilidades e de parcos proventos, de muita ignorância e muita fome, o Circo fazia ciclicamente parte da vida destas terras do país profundo, e do imaginário dos mais pequenos que viviam dias diferentes e animados. Era grande a curiosidade de ver, descobrir e experimentar as coisas novas que o Circo trazia.
Pois bem, o Circo estava mesmo a chegar!
Em fila indiana, as velhas “roulottes” iam aparecendo a pouco e pouco, quais carcaças desgastadas pelo tempo e pelas intempéries, algumas com os pneus lisos e remendados, outras com os frisos das pequenas janelas já carcomidos pela ferrugem, puxadas por carripanas cheias de amolgadelas, com os pára-choques presos por arames que mais pareciam vindas directamente da guerra da Indochina.
À frente, aquando da entrada para o centro da cidade, lá vinha um “Ford Anglia”, velhinho, uma autêntica relíquia, a cair de podre, atulhado de cartazes à frente, dos lados e atrás, anunciando as novidades e os horários dos espectáculos e com aquele grande altifalante fixo ao tejadilho, emitindo um som roufenho e agudo de uma voz dizendo:
- “Amanhã, sábado à tarde, grátis às damas, mais um grandioso espectáculo de circo com a estreia de novos artistas e com um conjunto de números verdadeiramente extraordinários…”
Homens gigantes sobre grandes “andas”, de fraque e cartola, caminhando pela praça, distribuíam balões coloridos e folhetos com o programa detalhado. Saltimbancos contratados, com pequenos macacos às costas, faziam curtas exibições, funcionando como chamariz.
A alegria e o prazer em ver as últimas novidades, tais como a bicharada africana, os grandes artistas e acrobatas, ultrapassavam todas as tristezas e dificuldades da arraia-miúda e das próprias gentes pobres do circo.
Assim, toca a comprar bilhetes, e depressinha, pois o Circo ao fim de três dias “levantava” ferros, acabando o espectáculo e frenesim diários, só voltando novamente para o ano.
O Circo, de média dimensão, mas bem apetrechado – contorcionistas, malabaristas, ilusionistas, acrobatas, funâmbulos, trapezistas, palhaços, mini orquestra, elefantes, panteras e seus domadores, tragafogos e outras figuras exóticas, tais como, o homem mais alto do mundo, o “Gigante da Malásia” com os seus três metros e quarenta, e o “Anão de Madagáscar”, o mais pequeno, que media quarenta e cinco centímetros – proporcionava mais de duas horas de um empolgante espectáculo que me deixava sempre fascinado.
O mundo circense, pelo seu encanto e mistério, é das recordações mais belas e interessantes da minha infância e juventude!

Já quase de noite, faltavam poucos minutos para a estreia. O espectáculo ia começar.
Cá fora vendiam-se os últimos bilhetes e os artistas nos seus camarins ambulantes e improvisados, davam mais um ou outro retoque na maquilhagem, espreitando o ambiente através de frestas nas cortinas floreadas de plástico que pendiam das janelitas das suas “roulottes”.
O anfiteatro estava a abarrotar e a expectativa era enorme.
Todos ansiavam por uma noite de grandes emoções, daquelas que perduram por muito tempo na memória. E assim foi!
O apresentador, de fato azul acetinado debruado a preto e prata, à Buffalo Bill, ainda muito jovem, mas já com algum traquejo nestas andanças, era alguém, que num futuro não muito distante iria desempenhar destacados papéis noutras áreas. Era nem mais nem menos, Guilhermo Cagaia, “O Vaselineiro da Cedofeita”, futuro “paineleiro”, mas já com uma lábia mais que suficiente para apresentar e controlar o espectáculo de princípio a fim.
Depois da saudação inicial, da apresentação do Circo e do agradecimento ao anfiteatro, completamente cheio de aficionados e curiosos, disse:
- Minhas Senhoras e Meus Senhores, Damas e Cavalheiros, os primeiros artistas da noite vão estar na pista, são eles, “Nandolona Riacho”, de Peñafidel, a famigerada mulher barbuda e os seus sete anões amestrados, “Os Nandolões” - “Bandeirola”, “Andreola”, “Secretariola”, “DeMola”, “Jaiminho I”, “Escurinho Sem Medo” e “Jaiminho II , o Peixêco”!
Para espanto geral, surgiu realmente uma mulher com uma barba de respeito, em fato de treino branco, a correr por ali fora, a todo o gás, subindo e descendo os degraus das bancadas, saltando sobre os blocos que delimitavam a pista, correndo, correndo, nunca mais parando. Logo a seguir, apareceram os sete anões, quais sempre em pé, de tronco nu e calças “à pirata”, com chapéus de bobo azuis e brancos de nove pontas e com os respectivos guizos, saltando como pulgas loucas no meio da pista, jogando à “bulha” uns com os outros, fazendo um excelente número de “wrestling”. Após umas piruetas, caneladas, rasteiras, peitadas e mordidelas, ameaçando ainda ir atrás do apresentador, agradeceram ao público, retirando os respectivos chapéus e mostrando as suas surpreendentes e luzidias carecas, fazendo peito e exibindo umas mamas bem crescidas.
Era realmente um espectáculo nunca visto, muito hilariante e desconcertante, de uma mulher barbuda quase lisa, e sete anões esquisitamente carecas, com uns valentes pares de mamas – a versão “pimba” do célebre conto de “A Branca de Neve e os Sete Anões”.
Um “mimo” para a garotada.
Foi a primeiríssima surpresa da noite, mas a mulher, incansável, e estupidamente, pensava eu, lá continuava à volta da pista, a correr sem parar, assim ficando até ao fim do espectáculo.

Seguiu-se um número inédito, muito original e que deixou tudo boquiaberto.
“O Caga-Lume de Krakatoa”. Um verdadeiro fenómeno. De boné de “baseball”com uma inscrição na pala dizendo “Night’s Heat” e de fato de macaco azul, com um largo buraco, ao fundo, nas costas, vinha acompanhado do seu “partenaire”, o “Piroblastro”. Logo a abrir, o “Caga-Lume” ao inclinar-se para a frente, fazendo a vénia de saudação, arriou um formidável peido. Risada geral, mas…imediatamente e em simultâneo, o “Piroblastro” aguardando atrás do artista pela saída da respectiva “bojarda”, acendeu o isqueiro e a pista quase pegou fogo!
Um óóóhhhhhhhhhh! perpassou todo o circo, seguido logo de outra igual exclamação de espanto, quando o portento de Krakatoa atirou mais dois “petardos” que iam incendiando o cortinado dos camarins e a lona de protecção do Circo.
Êxito total e muitas, muitas palmas, com o “Piroblastro” apontando para o “Caga-Lume”, dizendo que ele era o seu pai. Um grande momento protagonizado por aquele a quem todos os artistas beijavam a mão, e que era, na realidade, o dono do Circo.
Passados alguns instantes, “O Vaselineiro da Cedofeita” anunciou um número de ilusionismo – “As Quinhentinhas”.
Os instantes a seguir foram os mais insólitos da noite, sem que o público compreendesse o que se estava a passar.
O ex-boxeur “Rinaldo Treles”, o mágico da companhia, pegou num baralho de cartas oferecidas pelo Casino de Spino, e, à vista desarmada, enquanto passava as cartas de uma mão para a outra, como que por encanto, elas transformavam-se em verdadeiras notas de quinhentos, as quais eram apanhadas pelo seu “colaborador”, “O Vígaro”, que por sua vez as metia ao bolso.
Sem que ninguém percebesse, entraram dois guardas republicanos na pista e de imediato algemaram e levaram “O Vígaro”, com este a gritar:
- Vais pagar-mas todas, Rinaldo, ai vais, vais!
Rinaldo não se atrapalhou. Chamou o dono do Circo, convidando-o a segurar numa chávena de café e em barras de chocolatinhos. Nesse momento, a chávena e as barras transformaram-se incrivelmente num envelope com muitas notas, entregue de imediato ao ajudante de pista “Angusto Sabe Daarte” e em três matulonas, boazonas, completamente “em pêlo”, logo envoltas em mantos rascas, às riscas azuis e brancas, carcomidos pela traça, e que perguntavam:
- Ôi, caras! Cadê o Toino Aramujo?
Uns valentes assobios, uns piropos brejeiros, com um espectador “já sentindo” uma louca “paixão”, logo acompanhado de mais dois, de “bandeirinhas” do circo na mão, a quererem saltar para a pista, e com a maioria a continuar satisfeita e a divertir-se nas bancadas.
No entanto, a excitação e o burburinho desta cena picante acalmaram.
Eis que se abriram as cortinas e entrou pela pista um carro desportivo fazendo uma chiadeira tremenda e arrancando um “pião” monumental no seu centro. Enorme fumarada dos pneus, surgindo então, do seu interior, um hominídeo de feições simiescas, de gorro azul enfiado na cabeça, agarrando um taco de “baseball”. Era “Nando Maduro”.
O apresentador alertou para a “violência” do número. Em cinco segundos, ele destruiu quatro bombas de gasolina, quarenta prateleiras, deitou abaixo dois postes de electricidade terminando com uma caixa multibanco completamente escaqueirada, ao som da música “somos filhos de um dragão”.
Num ápice, “Nando Maduro” fez o seu papel, deixando a pista num estado lastimável. O público, surpreso, não sabia se devia bater palmas, se mandá-lo para a prisão.
Veio o intervalo para limpezas.
Nesta altura, a mulher barbuda continuava a correr, já com os anões podres de bêbados, impotentes, com níveis muito elevados, a puxar por ela.
Anda, Nandolona, anda, que ainda ganhas uma medalha! – balbuciavam os anões já de rastos.
Na segunda parte, o espectáculo, em grande ritmo, continuou a captar a atenção e o interesse dos espectadores. Três números se destacaram.
Em primeiro lugar, “O Homem de Duas Cabeças”. Não consigo descrevê-lo. Só sei que se chamava Tógonça Mascambilha. Um personagem que mais tarde, noutras funções, ocupando o lugar de pseudo chefe dos justiceiros, viria a dar brado. Foi um momento “aterrador” com muitos dos pequenitos presentes a tapar os olhos com as mãos e a deitarem-se no colo dos pais a berrar. Assustador. Ainda bem que este “show” foi muito curto.
Logo a seguir, o terror deu lugar à boa disposição, ao humor e à gargalhada geral.
Berto Mandril, o palhaço rico ou o “rico palhaço”, bem caracterizado, de barba e bigode tipo “pêlo de rato”, e Irmínio Toureiro, o palhaço pobre ou o “pobre palhaço”, careca e bem nutrido, protagonizaram cenas que proporcionaram umas boas risadas nos adultos e nas crianças. Mandril, não descolando da sua botelha de “John Walk”, encolhia constantemente os ombros e olhava de lado para o dono do circo, gesticulando e gritando:
- Ó presidente, eu, como presidente do sindicato dos palhaços de circo, vou pôr já este Irmínio na ordem! Vai já ver, quer ver?
Assim, o palhaço pobre corria à frente de um grandalhão munido de um porrete que montado num dragão azul insuflável, de vez em quando lá lhe descarregava mais uma traulitada, obrigando o Irmínio a estatelar-se na pista, berrando:
- Tudo bem, chefes, tudo bem! Está tudo controlado. Não se passa nada! Escusam de se preocupar e não batam mais no “ceguinho”! Estou do vosso lado!
A acabar o número, Irmínio, já cansado de levar tanta porrada, chegou-se próximo de Mandril, tirou-lhe a garrafa de “whisky” e espetou-lhe um valente estalo, dizendo-lhe:- Tu não és presidente, és um palhaço como eu, percebeste?
Risota geral na plateia!
Já no seu final, “o maior espectáculo do mundo” reservava-nos uma surpresa excepcional e ansiosamente aguardada por todos – o domador de panteras negras, Agapinto de Sôza e os seus espectaculares felinos.
Foi colocado o gradeamento de protecção à volta da pista, onde Nandolona corria sem parar, e aguardava-se a todo o instante a entrada das feras. Nessa altura os holofotes focaram-se em alguém do público que observava os trabalhos com enorme atenção. Era Vittorio Pederneira, o novo domador, prestes a assinar contrato. O actual, Agapinto, no centro da pista, esperava tranquilo a chegada dos bichos. Um misto de expectativa e medo atravessava toda a plateia. Nesse momento surgiram vinte grandes felinos, negros, de primeira categoria, com um apito dourado pendurado na coleira. Grandes rugidos, e o público em “suspense” total. Agapinto domava e dominava as feras na perfeição. Uma exibição soberba e memorável.
Nisto, deu-se o imprevisto, e tragicamente parte do gradeamento caiu. Foi o pânico total, com uma das panteras, a “Xupistra”, a saltar para as cadeiras próximas; e foi quando a vi, à minha frente, cara a cara, fixando-me com aqueles olhos misteriosos, pronta a atacar, e, com um rugido terrífico, preparou o salto levantando a pata para me derrubar!
Sentado na cadeira, petrificado, sentia-me preso, indefeso, entregue à minha sorte, sem me poder levantar, quanto mais fugir! Por momentos, fechei os olhos!
Uma angústia que só terminou, quando aflito, com a minha camisa encharcada em suor, abri novamente os olhos e mirando em redor, fui ouvindo um barulho de motores, sentindo-me preso a uma cadeira por um cinto de segurança. Viajava de avião e tinha tido um sonho fabuloso, extraordinário! Sim, tinha estado a sonhar!
Viajava para os “States”, mais propriamente para Ataranta, onde decorriam os Jogos Mundiais do Olimpo.
Estava prestes a chegar, e não queria perder de maneira nenhuma as provas de atletismo que se disputavam naquele dia.
Entrei no estádio e já decorria a prova final de fundo, senhoras, com um poderoso conjunto de atletas que detinham os melhores tempos e os recordes da especialidade. À frente, prestes a cortar a meta, em primeiro lugar destacada, parecia-me ver algo que à minha retina e à minha memória era familiar. Sim, aquela mulher que no Circo corria sem parar, estava ali, já segurando a bandeira, completamente exausta, mas vitoriosa.
Era Nandolona, a mulher barbuda!
Perguntei-me se o que estava a ver era o sonho fantástico, era a realidade ou era uma lenda?
Pensando bem, era mesmo a realidade de uma lenda de um sonho fantástico!
A lenda da mulher barbuda!

GRÃO VASCO