domingo, março 29

O RÉQUIEM

No campanário da Basílica das Ratas, Quim, o velho sacristão, antigo guarda-redes e adepto do sempre Glorioso das Amoreiras, pendurando-se na grossa corda do grande sino de bronze germânico, voava de um lado ao outro, como nos seus bons velhos tempos e puxava-a com toda a tranquilidade, soltando simultaneamente sonoras gargalhadas entre cada uma das doze impressionantes badaladas do meio-dia.
Nesse dia, às 12.01 em ponto, começava o “Réquiem” pelo visconde e suas gentes, todo um cerimonial religioso dedicado à hecatombe de Munique, uma fenomenal réplica de 7.1 na escala de Richter, de um terramoto cujo epicentro de 5.0 graus tinha já ocorrido quinze dias antes em Lisboa, originando uma catástrofe inimaginável no grémio do aristocrata falido e suas redondezas.
Os seus prosélitos, após a tremenda bebedeira provocada pelas cervejolas de alta graduação de Munique e pelo jejum das carlsbergs pilseners algarvias, com o consequente chorrilho de disparates, constante asneirada e deprimentes e etílicas participações televisivas, estavam em risco de salvação. Só uns cânticos litúrgicos, umas ladainhas e rezas a SanBento dos Doze e outros rituais complementares, poderiam purificar esses fervorosos
devotos do anti-Glorioso de uma descompensação grave e perigosa provocada pelo síndrome de abstinência, que os conduziu a um louco desespero, total e colectivo, chegando mesmo a chamuscarem as respectivas badanas naquela fornalha infernal de três semanas terríveis, que nem os submissos facciosos dos “bombeiros avençados” dos “media” a eles afectos, conseguiram apagar.
O grémio do visconde falido lá estava em peso, na Basílica das Ratas, representado pelos seus altos e baixos dignitários, na esperança de que as preces à “intervenção divina” os ajudassem naquela hora difícil, plagiando as atitudes e comportamentos do falso beato de “Palermo”, que patética e hipocritamente já tinha pedido também à “justiça divina”, que substituísse a “justiça dos homens” para escapar de uma vez por todas ao “inferno terreno” pelas suas façanhas corruptas e criminosas de trinta anos, intercaladas por surras e murraças nas amásias e pela debochada vivência, à tripa-forra, com refinadas afilhadas por conveniência, mas reais alternadeiras da noite de todos os calores e afins. E sabe-se lá que mais!
Era o momento para as altas individualidades do “brasão do verdete” exorcizarem todos os seus fantasmas vermelhos, na certeza de que seriam ouvidos tanto, quanto o falso beato.
Uma delegação ao mais baixo nível da corja corrupta, representada por reles e mafiosas patentes, e liderada pelo próprio Giorgio, encontrava-se estrategicamente posicionada no coro alto da basílica, pronta para o que desse e viesse. Abel Carabinieri, Nando Maduro, merdium Alves do Celse,
Marisa da Vandoma, e uma pandilha de pistoleiros, proxenetas e parasitas, borrifando-se totalmente para a missa, farejavam e escarafunchavam, espreitando tudo quanto era canto, na perspectiva de encontrar algo de valioso para a subtracção – operação aritmética que este bando, desde a escola primária sabia fazer muito bem - ou algum mouro infiel, não convertido ou vermelho.
O “Emplastro”, com uma tiara enfiada na cabeça e vestido com o paramento do bispo, já estava postado num andor das procissões, substituindo o santo respectivo, e com o báculo, entretinha-se a enxotar a praga de ratas que por ali pululava.
Jameson, muito embora o “réquiem” começasse após as doze, ainda se encontrava na plena posse das suas faculdades, pois nesse dia prometeu aos “strumpfs” um jejum a pão de Boliqueime e água de Monchique. Ladeavam-no o “Ascensorista do Tivoli”, um analfabeto irracional que em tempos tinha sido promovido a presidente do grémio do visconde, cuja primeira medida que queria implementar era pôr o Glorioso de joelhos, “Zé Retrette Projectista”, o do “pacto maldito”, cujo desejo mórbido era acabar com o Glorioso e o “Bigodes em fuga”, outro eleito também, que “deu de frosques” para terras de África quando viu as pilosidades a arder por falcatruas diversas, mas que após vinte anos de estratégia controlada acabou por ver os seus crimes prescreverem, o que lhe permitiu o regresso tranquilo ao grémio. Participava também no evento, um grupo coral de solistas medianos, postado no coro baixo da basílica, mais conhecido pelo grupo dos “lagartus horribilis” composto por Salgema Garçone, Roger McCann, Roger de Briteiros e Paolo Hebreu, uma mescla de falsos bíblicos e saxónicos de pacotilha e um trio de “paineleiros” da mais fina água, Zeca Dias Diabo, o “Camaleão das Estatísticas e o “Charuteiro dos Fígados”. Encontravam-se também presentes Dranquilo Bentoso, Manuel Sarilheiro, um pateta que quer sempre ficar à frente do Glorioso, porque para ele o primeiro lugar pouco importa, o Cónego Delícias, com uma pose muito cardinalícia, vá lá saber-se porquê, o grupo das beatas submissas do Lumiar e a célebre madre da Merdaláxia, com a sua grande madeixa de cabelo verde eléctrico e espírito “cantaroleiro”, e mais uns quantos submissos. O “Burro do Lima” ficou à porta da basílica, pois não eram permitidas entradas a bestas de tamanho calibre. Um Baptista “apitador”, junto do confessionário, esperava a penitência pelos seus pecados. O pior deles, o desvio de dez milhões ao Glorioso, no passado ano, tinha tido rápida absolvição, mas recentemente, um simples engano nos trocos em desfavor do visconde falido, quase lhe valeu a excomunhão, e para a evitar, ali estava ele a redimir-se desse “pecado mortal”, confessando uma amnésia profunda sobre a peitada dum “falso mártir” em vias de canonização pelos “media” avençados e sobre o gesto manual do rapinanço de Dranquilo, rogando perdão por tudo.
O seu confessor, o padre Euleiteiro, prelado “yé-yé” daquela freguesia, pelo sim, pelo não, logo lhe propôs o seu rebaptismo para o livrar de futuras tentações. Esta pequena cerimónia iria decorrer no final do “Réquiem”.
Segundos antes do início das solenidades, chegaram o Arcebispo Primaz de Munique, Schweppes Klinsmann e o Prelado dos Algarves, monsenhor Carlos Botins, causando grande burburinho na assistência, redobrada atenção da corja corrupta e evidente mal-estar na comitiva submissa, pois o ostensivo e premeditado atraso deu uma enorme visibilidade a outros grémios que não o do visconde falido.
Os cânticos começaram pelo coro baixo, que com os seus submissos e “falsetes” decibéis vocais, ia criando aquele eco gregoriano e monástico, das altas e grandiosas catedrais góticas da Idade Média. Intercalados com um intenso aroma a incenso que se espalhava no ar, diluíam e anulavam quase por completo o intragável efeito sonoro e odorífero dos “grandes torpedos” e das “temíveis bufas” do incorrigível e incontido Giorgio e de parte da sua comitiva, – algo inevitável e de difícil controlo, mas bastante inconveniente para uma cerimónia tão solene – um bando irremediavelmente perdido!
O ambiente estava saturado, mesmo muito pesado, mas a cantoria litúrgica continuava. E não era para menos.
No entanto, subindo com alguma dificuldade a escadaria do púlpito, tossindo circunstancialmente como um real aristocrata e descendente legítimo do visconde, o “Charuteiro dos Fígados”, preparava-se para recitar o salmo 12 de SanBento dos Doze e fazer a respectiva homilia cujo título era, “Carpindo a Pré, para o Glorioso ver como é que é!”. Lindo!
E lá desfiou ele, durante doze intermináveis minutos, um relambório de pedinchão, que após reverencial genuflexão na direcção de Giorgio, obteve deste um aceno concordante, recomeçando então os cânticos do coro baixo e as ladainhas das beatas do Lumiar. No coro alto a bagunça era total. Pó a granel, tráfico de metralhadoras e marfim, testes de gravidez, compra em dinheiro vivo, de viaturas desportivas. O “chifrudo” andava por ali. A pandilha, completamente alheia ao evento, não se enxergava. Como em “Palermo”, tudo era feito às claras. Foi obrigada a retirar-se, não sem que algumas imagens de santos, retábulos e ornamentos em ouro tivessem sido surripiados, destruídos ou danificados, fazendo lembrar os ferozes ataques que este perigosíssimo bando fez às áreas de serviço das auto-estradas em dia de futebol na capital. Na fuga atabalhoada, pela escadaria de acesso ao piso inferior, deixaram um rasto de envelopes com avultadas quantias em dinheiro, quilos de café e chocolate, fios dentais, soutiens e preservativos. Uma confusão nunca vista.
O cerimonial estava a findar. Faltava o rebaptismo do “apitador arrependido”. O sacristão, conhecedor de todos os meandros secretos da basílica, desde os biombos da sacristia até às redes do confessionário, encostando as suas mãos, uma à outra, esticando os dedos indicadores e fazendo a sua junção, numa pose de solene religiosidade, apontava-os para Euleiteiro, depois para as beatas e por fim para si próprio, sorrindo para Carlos Botins. Foi uma cena cómica, cheia de malícia, com Euleiteiro a ver, mas a disfarçar e a dizer baixinho ao sacristão:
- Ó vermelhusco, “tás-te a habilitar”! Com essas heresias ainda “chupas” com um castigo divino!
As beatas do Lumiar cochichavam, tentando adivinhar o novo nome de Baptista. E sussurravam elas:
- Olegário? Não, esse não, nem Costas, nem Elmanos, credo! Abrenúncio! Jójó Soisa, Pedro ou Bruno não era mau. Mas Duarte ou Paulo? Não eram de enjeitar. Vamos lá ver o que vai dar, vamos lá ver…
Uma delas, já muito surda, não sabendo do que se falava, observava às outras:
- Estão a falar de tanto homem!... Mas ainda assim, prefiro a do padre Francisco! Toma lá que é para aprenderes!
Dirigindo-se para o baptistério, Euleiteiro soletrava mais um salmo e ao chegar perto da pia, colocou uma mão na cabeça de Baptista e com a outra, aspergindo-a com a água purificada, disse:
- Baptista, eu te rebaptizo, com o nome de Eleutério, na certeza de que a partir de agora o teu apito se transformará num testemunho de fé e num talismã para a Pré!
Que sejas um grande exemplo para todos os outros pecadores” apitadores”!
Uma exclamação de espanto percorreu toda a nave central da basílica, ecoando pelas laterais. E os presentes, em coro, exceptuando três, responderam:
- Amén!

GRÃO VASCO